O lento reconhecimento de que a cor conta



Em todas as estatísticas brasileiras de mortalidade poderíamos ver, até 1996, a ausência do quesito "cor". Algumas variáveis sócioeconômicas "clássicas", como a idade, o gênero, a classe social etc., são importantes para a análise de muitas variáveis - políticas, econômicas, sociais e culturais. A cor também tem um importante papel explicativo e analítico, mas foi, e ainda é, parte do conjunto dessas variáveis "clássicas". Ela pesa, ela explica. Não obstante, o mito do paraíso racial ainda é parte da tradição intelectual brasileira. Durante a ditadura houve uma supressão de informações sobre a cor, precedida por um debate honesto sobre se deveria ser parte das informações censais regulares ou se os assuntos relacionados com a cor deveriam ser estudados à parte, mediante pesquisa dedicada a eles. A falha deste debate, no meu entender, foi ver essa opção como obrigatória. Não é. Durante e depois da ditadura, trabalhos como os de Carlos Hasenbalg, Nelson do Valle Silva mostraram a ampla gama de comportamentos relacionados com a cor. Silva escreveu um artigo clássico sobre quanto custa ser negro no Brasil, atualizado posteriormente. Em tempos mais recentes, Sergei Soares demonstrou que o preço pago por ser negro difere do preço pago por ser mulher, o primeiro resultando do acúmulo de características estruturais e o segundo de decisões na contratação, na qualificação diferencial, arbitrariamente atribuída a pessoas de sexo diferente, e na discriminação salarial. Em 2002, Doriam Borges e eu apresentamos um trabalho chamado "A cor da morte", mostrando como a vitimização por homicídios era maior, proporcionalmente, entre os negros. Recentemente, Daniel Cerqueira e outros pesquisadores do IPEA calcularam, com maior exatidão, esse risco relativo com base na raça. Não obstante, a relevância das raças e do racismo na explicação de muitas diferenças não poderia ser documentada se não fosse a decisiva ação do Movimento Negro. A raça continuaria fechada a sete chaves no armário das estatísticas brasileiras de mortalidade. Em 1996, a raça foi jogada para a categoria "ignorada" e o número de ignorados era ridículo. Mesmo depois de 1996, a lentidão do treinamento do pessoal para aceitar e bem registrar esse quesito fez com que tivessemos um "tempo cinza" de alguns anos até que os dados sobre raça atingissem um patamar ainda deficiente, mas que permite pesquisar e trabalhar com os dados. Escolhi os dados sobre suicídios para demonstrar como a ausência de informação impediu a pesquisa sobre a relação entre raças e suicídio até o fim do século XX. Veja os dados.


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