NOSSO FUROR PUNITIVO


Versão ligeiramente diferente foi publicada
n’O GLOBO de 15/11/2011, Opinião, pág. 6


Aos 13 anos, eu estava sentado no banco, vendo um jogo de tênis, quando passou um senhor andando lentamente, dirigindo-se para a saída do clube. Um homem maduro, sentado ao meu lado, confidenciou: “aquele cara é um senador. O maior ladrão...” Fiquei indignado: como é que um político ladrão desfilava tranquilamente em frente a nós? Aquele homem deveria estar na cadeia! Em nenhum momento, questionei a veracidade da acusação; afinal quem o dissera era um adulto. Pouco tempo depois, conheci o filho daquele homem, aliás, um garoto nascido no mesmo dia, mês e ano que eu. Nos tornamos amigos e freqüentei a moradia do senador, uma casa simples, de um andar, na rua Coelho Neto, nas Laranjeiras. Não tinha carro, não tinha mordomias, e ia de ônibus para o Senado. Vivia tão modestamente quanto os meus pais, um funcionário público e uma professora primária. Era tido como um símbolo da honestidade política. Foi o meu primeiro contato com a maledicência e com o furor punitivo que eu guardava dentro do meu próprio peito, mas que eu ignorava.
Muitos anos depois, na UnB, tive alguns alunos que pertenciam a uma só família. Estudiosos, simples, iguais aos outros. Muito tempo mais tarde, no meio de uma campanha organizada de descrédito  do Governo Fernando Henrique, houve sérias acusações. Eu não liguei o nome de uma das principais vítimas, nem sabia que era uma campanha orquestrada por um partido adversário. Eu estava entusiasmado com os “novos promotores”. Seriam honestos, implacáveis na perseguição correta dos criminosos, particularmente dos ladrões do dinheiro público. Posteriormente, foram flagrados com menores num motel. Os novos promotores não eram resistentes às velhas tentações.
Não era só eu. Milhões de brasileiros estavam (e continuam) com raiva, com muito ódio no coração. O contraste entre a pobreza de parte da população e os milhões que seriam roubados quotidianamente dos cofres públicos era um dos meus motores. Mas o grande motor da população era o medo. O Brasil é um país com muitos crimes e alta impunidade. A Justiça Brasileira (incluindo tudo: leis superadas; faculdades de direito de mentirinha; advogados incompetentes; juízes preguiçosos; um Legislativo inoperante que não consegue implementar, através de leis complementares, o que está na Constituição desde 1988 e muito mais) , é das mais disfuncionais do planeta. Cara, muito cara, e ruim, muito ruim. Temos uma taxa de homicídios mais alta do que a de outros países latino-americanos com estatísticas razoáveis. O excesso de crimes cometidos e a escassez de crimes solucionados provocam uma disparidade que estimula o crime e gera um perigoso desejo punitivo por parte da população. Queremos prisões e penas rigorosas. Queremos sangue. E nossa fúria punitiva chegou a níveis que permitem conviver bem com a possibilidade de cometer injustiças.
Um momento perigoso, que favorece erros com conseqüências catastróficas para as vítimas. As polícias, acuadas, produzem resultados apressados, erram e, freqüentemente, passam por cima dos procedimentos legais. Propostas de medidas duras elegem deputados federais e estaduais. Programas da linha dura no radio e na televisão já elegeram muitos candidatos. Esse animus punitivo enseja o uso de falsas acusações com objetivos políticos.  
A avaliação da adequação da divulgação de notícias policiais envolve mais do que a polícia e os acusados. Obviamente, a mídia é parte, pois não pode ser simplesmente um porta-voz da polícia. Além disso, os vazamentos intencionais não se originam exclusivamente na própria polícia, nem são sempre bem-intencionados. Há outros atores nesse drama, como procuradores e juízes.
Um aspecto negligenciado nas análises das injustiças envolve os danos causados a familiares e amigos dos acusados, as vítimas secundárias. Num famoso caso de triste memória, as falsas acusações feitas a Eduardo Jorge, um dos líderes do PSDB, produziram outras vítimas: o filho, então com 16 anos, sofreu com o escárnio da parte de alguns alunos e até de professores, o mesmo acontecendo com a esposa que, na época, estudava jornalismo. Pela primeira vez, o rapaz perdeu o ano; a esposa teve que abandonar a faculdade. É conhecida a expressão “good news are bad news”. Notícias boas não vendem jornais.   Embora o acusado, Eduardo Jorge, tenha ganho todos os processos contra alguns procuradores, políticos e importantes jornais e revistas do país, há um dano psicológico e sócio-político que não pode ser desfeito. O sofrimento não volta atrás; não é recuperável.
É um incomensurável que não temos como estimar. Os números não permitem isso. Numericamente, a Polícia Federal está dentro de parâmetros aceitáveis. Seu site informa 558 operações, em 2009 e 2010, com quase 5.400 prisões, incluindo 307 servidores públicos e nove policiais da própria PF. E os erros? A PF perdeu 18 processos desde 2007 até o presente, resultando em ônus de pouco mais de um milhão de reais. Comparativamente pouco, ainda que esses totais devam aumentar porque há processos em tramitação. Porém, casos de repercussão causam danos maiores à PF. Um deles, tornou conhecido o delegado Protógenes Queiroz, e a  Operação Satiagraha, comandada por ele, que resultou na prisão do banqueiro Daniel Dantas. Não obstante, a anulação, pelo Superior Tribunal de Justiça, das provas obtidas e a eleição do delegado para deputado pelo PCdoB, lançaram uma nuvem de suspeita sobre a lisura dos procedimentos da PF. Ficamos sem certeza.
Não é somente no Brasil. Nos Estados Unidos, o Innocence Project começou a usar técnicas de DNA para retirar inocentes da prisão e até salvar a vida de pessoas erroneamente condenadas. Ajudou, principalmente, os condenados na época em que a polícia americana não usava corriqueiramente testes de DNA. Houve outros casos em que não havia material para o teste de DNA e o julgamento e suas provas foram revistos. Em verdade, o teste só se aplica a cerca de dez por cento dos casos criminais. No total inocentaram 278 pessoas até agora, inclusive 17 condenados à morte; do total, 62% eram negros. Claro, muitas centenas de culpados pelos crimes mentiram e se apresentaram como inocentes, apostando num erro. Os criminosos mentem muito. Mas alguns casos foram marcantes: na Louisiana, Ricky Johnson serviu 25 anos por um crime que não cometera!
Há pessoas condenadas através da mentira, não apenas através de erros policiais e judiciais. Tomemos o estupro que, infelizmente, entrou na arena política. Algumas organizações feministas minimizam o número das acusações falsas, colocando-as ao redor de 2%; os sites de direitos dos homens nos dão cifras muito diferentes: incluindo erros, nada menos de 41%. São dados irreconciliáveis. Onde está a verdade? Uma pesquisa do Department of Justice, de 1996, chamada de Convicted by Juries, Exonerated by Science: Case Studies in the Use of DNA Evidence to Establish Innocence After Trial lista 28 casos em que os testes de DNA eximiram os condenados por estupro de qualquer responsabilidade. Ao sair já tinham passado, na média, mais de sete anos na prisão. No conjunto, desde 1989, dez mil casos chegaram ao FBI, dos quais dois mil não permitiam qualquer conclusão, em outros dois mil a condenação foi falsa e em seis mil os testes confirmaram a condenação. A margem de erro é inaceitável.
E aqui? Não sabemos, mas desconfio que os erros, inclusive os intencionais, são numerosos.
Precisamos da PF (e das demais polícias) para reduzir a impunidade, mas não podemos cometer injustiças. É estreito o caminho que pode ser trilhado.

GLAUCIO SOARES     IESP/UERJ

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