BRASIL, UM ESTADO BABÁ?

No país mais poderoso e rico do mundo, os Estados Unidos, um cidadão morre a cada vinte minutos porque não tem seguro de saúde. O The Urban Institute usou dados ultrapassados, de 2008, para calcular que cerca de 27 mil americanos entre 25 e 65 morrem prematuramente por que não têm seguro de saúde. Esses dados e outros muito piores levaram Bill Clinton e Hillary Clinton a propor um sistema nacional de seguro de saúde, que foi rapidamente bloqueado no Legislativo pelos republicanos. Dezenove anos mais tarde, Obama conseguiu aprovar um sistema que transfere quase todo o ônus do seguro para os indivíduos, obrigando-os a fazer um seguro. Inclui outras medidas que são padrão há muitas décadas nos países mais desenvolvidos, rejeitados pela direita americana, que não quer saber de gastos públicos. São vistos como absurdos, dada sua concepção do mundo.

Como pensam os republicanos? Mitt Romney chama as medidas de proteção da cidadania de “o estado babá”, the nanny state.

E as 27 mil mortes prematuras? Não esqueçam que são anuais, que cada ano morrem mais  milhares de pessoas, de concidadãos por falta de seguro médico. Mas, segundo o candidato republicano, que voltaria no tempo e anularia a reforma de Obama, é um preço alto e trágico, mas necessário para que os americanos assumam a responsabilidade por suas próprias vidas, para que paguem individualmente por seus erros e omissões.

Antevejo uma ideologia distorcida que formaria a base de uma seleção na qual os incautos, os desprevenidos e os simplesmente desfavorecidos pela sorte (nasceram pobres, tiveram que deixar a escola cedo etc.) morreriam cedo e se reproduziriam menos. No fundo, um conceito nazista, com moldura cultual. A morte de milhares e milhares cada ano teria a virtude de fazer com que muitos mais passem a assumir responsabilidade pelas suas vidas. É o que pensa a direita americana.

Não é a primeira vez em que a crueldade social é descrita como virtude. Acreditem, mas muitos direitistas e conservadores só conseguem ver nesse genocídio a inegável transferência dos custos da responsabilidade para outros americanos, que pagam esses gastos através dos impostos. Como entre os beneficiários há maioria de negros e hispânicos e entre os que pagam o preço é mais alta a proporção de brancos, a questão rapidamente assumiu contornos raciais.

Entendamos que não advogo um “estado babá”. Sempre que volto dos Estados Unidos sou surpreendido pela pasmaceira da população brasileira, inerte, sem iniciativa, sempre à espera de que o estado resolva seus problemas. Mas entre a crueldade do estado ausente, proposto por Romney para reverter o “estado babá”, e a sociedade pasmaceira, há muito espaço. Há muita coisa no meio. Fico chocado com a insensibilidade de alguns conservadores que consideram a morte prematura de 27 mil compatriotas um preço pequeno “para evitar o socialismo”, termo que, nos Estados Unidos tem profundas conotações negativas. São noções e conceitos antigos. Não mudaram: já estavam lá. Houve e há resistência ao imposto de renda, criado em 1913 parcialmente em preparação para a guerra que se aproximava e que, posteriormente, foi oficialmente incorporado na Constituição pela 16ª Emenda.

Fico chocado, também, ao constatar que essa mesma ideologia conservadora não se indigne com o fato do país gastar, em 2011, 690 bilhões de dólares (dólares constantes de 2010), quase seis vezes o que gasta a segunda maior gastadora com os militares, a China, com 121 bilhões de dólares em 2010 (também em dólares constantes de 2010).

E nós, brasileiros? Onde ficamos? Não podemos deixar de considerar que há necessidades urgentes que não são preenchidas devido à impossibilidade de que os interessados o façam, nem podemos deixar de considerar que o estado brasileiro é muito caro e oferece muito pouco, nem podemos deixar de considerar que nossa corrupção é endêmica e grande, abocanhando uma parcela significativa dos gastos públicos. Quantos brasileiros seriam salvos se metade do valor da corrupção fosse investido na saúde pública, área em estado de calamidade há muitas décadas?

Entre os extremos do “estado babá” e da crueldade corretiva das irresponsabilidades individuais e sociais há muito espaço, há alternativas, há combinações novas e criativas. Temos que estudá-las, pesquisá-las.

Para tal, precisamos de dados corretos, analisá-los e meditar, meditar e meditar porque por ação (e mais por omissão) fomos nós que construímos o estado e a sociedade que estão aí. Pensemos em nossos filhos e netos, brasileirinhos e brasileirinhas, que vão herdar as consequências dos nossos erros.

 GLÁUCIO ARY DILLON SOARES IESP-UERJ

Publicado, com alterações, no Correio Braziliense

 

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