Câncer e capitalismo


Glaucio Soares, Jornal do Brasil, 23:21 - 11/04/2010
RIO - É irônico: há uma década, Gerry Potter era uma das esperanças dos cancerosos. Trabalhava em várias frentes, mas principalmente em duas. Desenvolveu, ou ajudou a desenvolver, dois medicamentos. Os direitos de um deles foram vendidos, vendidos outra vez e a companhia que o desenvolvia acaba de ser comprada por quase um bilhão de dólares. Quem padece de câncer da próstata e se informa já ouviu falar de abiraterona (de fato, acetato de abiraterona). Houve exagero a respeito dos seus efeitos e um festival midiático injustificável, mas é um dos remédios mais poderosos e eficientes contra esse câncer em muito tempo. Ainda está em testes. Em testes secos, diretos, sem mais nada, aumenta a esperança de vida (de seis a oito meses, segundo um estudo, um pouco menos, segundo outro); e é possível que, se tomada com um booster (outro medicamento, que não cura, mas aumenta o efeito do tratamento-base), a sobrevivência ganha possa chegar a 18 meses. Para quem está morrendo, não é pouco. Os dois ainda estão sendo aperfeiçoados. Abiraterona talvez funcione também contra cânceres da mama e do cólon.
A outra droga seria contra todos os cânceres. Nada menos...
Esse esforço não saiu grátis para Potter. Em verdade, ele leu nos jornais o oba-oba a respeito da droga que desenvolveu quando estava dentro um hospital para doentes mentais. Os problemas da profissão e da vida agravaram a bipolaridade de Potter.
Potter trabalha diferente da maioria dos pesquisadores das empresas de hoje. Não correlaciona tudo com tudo: muitos pesquisadores usam, inicialmente, centenas e até milhares de pratinhos Petri para ver o que funciona. Potter faz pesquisa inteligente: estuda a célula cancerosa, entra nela, a vê desde dentro, analisa seu funcionamento, estuda seus pontos fracos e dirige seus esforços para esses pontos. A pesquisa inteligente é direcionada.
O que piorou a condição mental de Potter? Duas coisas: as incertezas provocadas por instituições cujas atividades que não se direcionam para curar gente e sim para fazer dinheiro e as cartas dos pacientes. Sim, as cartas desesperadas de doentes e familiares de todas as partes do mundo que ouviram falar nas suas pesquisas e escreveram, seja pedindo para entrar num dos testes clínicos, seja desejando e pedindo que ele encontrasse a cura. Ou eram intercessórias e se referiam a terceiras pessoas que estavam morrendo, usualmente pais e maridos, ou eram diretamente escritas por eles. Mas as decisões da indústria farmacêutica são empresariais, não são curativas nem humanitárias. Promete dar dinheiro, a empresa faz; não parece que vai dar dinheiro, a empresa fecha o projeto. Não pense o leitor que sou um daqueles comunas que vivem do ódio ao capitalismo – nada disso! Imitando Churchill a respeito da democracia, acho que o capitalismo é uma porcaria, só que os outros sistemas são muito piores. Os grandes avanços médicos foram, quase todos, feitos em países capitalistas. O mundo comunista e outros sistemas autoritários contribuíram muito pouco para o desenvolvimento da ciência médica. Mas a rationale baseada no lucro tem mandado muitos remédios promissores latrina abaixo porque não havia visão de que dariam lucro num prazo razoável. Estamos nas mãos de uma corja de bean-counters, inclusive MBA's e contadores. Eles tomam as decisões cruciais, não os pesquisadores, nem os médicos, e muito menos os pacientes.
No caso da abiraterona, seguimos a via dolorosa de sempre. Os testes e laboratórios são caros. Era preciso capital de risco. Apareceu. A empresa que investiu o capital de risco foi vendida. Depois de várias compras e vendas, foi parar na Johnson por um quase bilhão de dólares, depois de passar pela Cougar. Há quem estime que poderá trazer trinta a quarenta vezes isso depois de ser produzida em massa, para um mercado gigantesco que cresce ano a ano. Bem mais de mil pessoas são diagnosticadas e registradas diariamente com câncer da próstata nos países onde há estatísticas confiáveis. E onde não há registros válidos? A esperança dos cancerosos é forçada a acompanhar os cálculos financeiros das empresas. A abiraterona talvez seja aprimorada, aprovada e colocada no mercado. O prestigioso The Times afirma que o medicamento poderá salvar mais de dez mil vidas todos os anos. No momento, estão numa pesquisa com mil e duzentos pacientes, com grupo controle – Fase III. Se os resultados continuarem positivos poderão licenciá-la em uns países antes de outros mas, mesmo assim, não será rápido – um, dois, três anos. Há pressa: afinal, somos milhões de pacientes e estamos morrendo.
Tristemente, Gerry Potter leu tudo isso de dentro de um hospital mental em Leicester. Estava lá porque sua doença mental é a que tem a mais alta taxa de suicídios e a tendência suicida pode ser muito agravada pelo estresse. E poucas coisas são tão estressantes como cartas de moribundos e de familiares de moribundos ou ver seu laboratório comprado e/ou fechado porque um bean counter acha que não vai dar lucro no futuro próximo.
Mas Gerry Potter não parou aí, na abiraterona. Ele tinha reaparecido em 2001, quando seu laboratório na pequena De Montfort University anunciou que pesquisava um medicamento que buscava as células cancerosas e as destruía (seek and destroy). Células de cânceres de vários tipos, não apenas de próstata. Era uma droga “inteligente”, chamada de DMU 212. Mas os experimentos com células em pratinhos Petri são fáceis e relativamente baratos. Não requerem genialidade. São chamados de Fase I (há quem os chame de Fase I-A). Há, depois, muitos outros passos: experimentos com seres vivos, usualmente camundongos; se esses derem certo, a seguir vêm os experimentos Fase II, com alguns pacientes muito avançados, verificando efeitos, testando dosagens; se derem certo, um amplo Clinical Trial (Fase III) – longo, demorado e custoso - é o passo seguinte. Não acaba aí: revisões por comissões com outros cientistas especializados, pedidos às agencias reguladoras e negociações etc., etc. O processo inteiro pode demorar muitos anos, até décadas. E haja dinheiro para financiar isso.
DMU 212 é o amor de Potter, paixão que ele admite. Abiraterona foi a primeira droga que ele fabricou com sua equipe. E não veio devagar, juntando resultados de outros pesquisadores, adicionando uma gota, uma pequena melhoria, como é o padrão de muitas pesquisas. Veio de repente: estudou, analisou, pesquisou e, quando testou, deu certo. É o modelo clássico dos cientistas universitários, que trabalham fora das indústrias farmacêuticas. Há poucos assim hoje em dia, mesmo dentro das universidades. A idéia por trás da abiraterona era matar as células cancerosas de fome. Depois do tratamento hormonal convencional, algumas células, diabolicamente, começavam a fabricar seu próprio alimento. Para isso usavam uma enzima chamada CYP17. E a tarefa era dificultar ou impedir que a enzima funcionasse. Era um processo interno das células e, para bolá-lo, foi necessário analisá-las desde dentro.
Quando iniciaram os testes, 80% das células morriam no primeiro dia. Um resultado promissor. Mas até que esteja provado e comprovado, aprovado pelas agências, fabricado em quantidades e disponível nas farmácias, serão muitos anos a partir do início das pesquisas. Uma década não é uma estimativa pessimista. Durante essa década, muita gente que seria salva morrerá. É o preço pago pela certeza, para evitar erros graves.
Os pacientes de câncer não são os únicos que pagam um alto preço pelo difícil e tortuoso processo que vai das pesquisas iniciais até a cura ou clara melhoria. Os pesquisadores também sofrem e pagam seu próprio preço. Potter o está pagando. Tudo em nome do lucro.
Glaucio Soares é cientista político.

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