Legislação sobre armas de fogo e suicídios: contribuições da Áustria


As armas de fogo aumentam, diminuem ou não afetam o número de suicídios?

É uma pergunta humanamente relevante. Mais de oitocentas mil pessoas se suicidam anualmente no mundo.[i] É, aproximadamente, o equivalente à população total de João Pessoa. Imaginem a execução de toda a população de João Pessoa. Porém, o tempo não para e os suicídios continuam – e aumentam. No ano seguinte, poderia ser São Bernardo do Campo, em São Paulo. Mais um ano e mais uma cidade evaporada, desta vez, digamos, Nova Iguaçu. Nos últimos dez anos é como se toda a população do Paraguai tivesse sido executada; nos próximos dez anos será o equivalente à Suíça. Evaporada pelos suicídios.

E no Brasil? Há alguns anos, oficialmente superaram os dez mil, uma possível subestimativa, e o número aumenta todos os anos.

Cada suicida deixa sofrimento. Pessoas que o amam, que gostam dele, familiares, amigos e conhecidos. Alguns deixam poucos; outros deixam muitos. São as vítimas ocultas da violência.[ii] Esse sofrimento aumenta a relevância ética e humana do tema, que merece ser estudado e conhecido. Bem conhecido. Conhecimento baseado em dados sólidos, em pesquisas cientificas, e não em chutes e achismos.

Há dias, um amigo reproduziu um texto sobre armas. Se referia às mortes por armas de fogo nos Estados Unidos e continha a seguinte afirmação: “65% dessas mortes são por suicídio, o que nunca seria evitado pelas leis anti-armas.”

Um chute errado e grotesco.

O que faz um pesquisador sério que quer verificar se há relação entre as leis que afetam a disponibilidade das armas de fogo e o número de suicídios? Começa se informando, lendo as pesquisas mais relevantes que já foram feitas. Não é pouco! Tomemos duas fontes comuns, que uso com frequência:

1. PubMed é um repositório aberto, de uso público, de pesquisas na área médica, incluindo saúde pública. Inserindo as palavras-chave “guns” AND “suicide”, obtemos 1.294 publicações;[iii]

2. Google Scholar também é um repositório aberto que abarca todas as áreas do conhecimento acadêmico e não somente a médica. É muito maior: lista mais de 131 MIL publicações.

Não dá para ler todos, mas a Google Scholar usa algoritmos e pode apresentar as publicações em ordem de relevância, incluindo o número de citações recebidas pela publicação, usualmente um artigo científico. E após a leitura de muitas dezenas ou algumas centenas, temos uma boa ideia do que é o “campo”, para usar uma expressão de Bourdieu.

É o produto de dezenas de milhares de pesquisadores, envolvendo milhões de anos de trabalho. Conhecimento que a humanidade acumulou e que não pode ser ignorado por curiosos preguiçosos. Muitas dessas publicações requerem “numeracy” e leitura detalhada. E muito trabalho. Algumas, inicialmente, requerem, apenas, a leitura do resumo. É um procedimento que permite excluir muitos artigos da lista de leitura detalhada. Há outros que requerem muita atenção e terceiro que requerem busca de dados complementares.

Ao dialogar com a literatura cientifica, a primeira pergunta que se impõe é se políticas restritivas à aquisição e porte de armas e munições afetam ou não a taxa de suicídios.

Há pesquisas sobre o tema?

Há.

É preciso lê-las com atenção. O que requer tempo.

Um artigo dos mais recentes, metodologicamente sofisticado se refere à Áustria.[iv] Em julho de 1997, a Áustria adaptou sua legislação à Diretiva 91/477/EEC que controla a aquisição e posse de armas. Entretanto, as restrições da nova legislação austríaca foram além das propostas no âmbito da União Europeia. Requer um motivo para a aquisição, incluiu (pela primeira vez) testes psicológicos, a idade mínima de 21 anos, e verificação de antecedentes criminais.

A primeira consequência da legislação foi a redução no número de novas licenças para obter armas.

Foi real. A mudança nas taxas de licenciamento é estatisticamente significativa (t=–5,28, P<0,0001).

Essa redução afetou os suicídios com armas de fogo. Antes a tendência era ao crescimento (aproximadamente 140 suicídios a mais por ano); após a legislação, observamos uma redução de 125 por ano.[v]

Qual o efeito detalhado sobre os suicídios?

Os autores esclarecem:

“Os resultados mostram que a taxa de suicídios em armas de fogo diminuiu entre mulheres de 20 a 64 anos, homens de 20 a 64 anos e homens com 65 anos ou mais; os suicídios de armas de fogo como uma porcentagem do total de suicídios diminuíram; a taxa de homicídios das armas de fogo diminuiu; e a taxa global de licença de armas de fogo diminuiu após a promulgação da nova lei. Esses resultados são verdadeiros, mesmo quando se ajustam a fatores de confusão comuns de taxas de suicídio, como o desemprego e o consumo médio de álcool per capita, bem como a proporção de homens jovens na população. ”

Houve substituição dos meios usados para o suicídio?

Não. Não houve.

Qual o efeito sobre a taxa total de suicídios no país?

Houve clara e insofismável redução: a taxa era de 22,2 por cem mil em 1995 (antes da legislação); 19,6 em 2000; 16,9 em 2005 e 15, em 2010. A OMS padroniza e disponibiliza dados ajustados por idade, que chegam a 2015, a partir de 2000: 15,8; 13,2; 12,1 e 11,7 – em 2015. Esses dados confirmam: houve uma tendência à redução, que permanecia quase duas décadas mais tarde.

E os homicídios?

Os autores fornecem dados e apresentam os resultados graficamente:

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Antes de 1998 não havia tendência discernível no que concerne os homicídios com armas de fogo.[vi] Porém, após a mudança na legislação, observamos uma tendência negativa de –2.3% ao ano, estatisticamente significativa (χ2=23,6, P<0,0001). Controlando o desemprego, o consumo de bebidas alcoólicas e a percentagem de homens jovens na população, a tendência continua significativa (χ2=3.9, P=0.049).

Esses homicídios evitados, com armas de fogo, foram compensados pelo crescimento de homicídios com outros meios?

Não. Não foram.

Os dados do Banco Mundial mostram uma tendência ao declínio na taxa de homicídios a partir de 1998, até 2007, quando atingiu 0,5 por 100 mil habitantes, seguida por pequenas oscilações, voltando ao baixo nível de 0,5 em 2014 e 2015.

A mesma equipe analisou dados internos da Áustria, comparando o equivalente aos municípios, chegando à conclusão esperada de que suicídios com armas de fogo são mais frequentes em municípios com maior taxa de licenças para posse de armas.[vii] Infelizmente não temos acesso às taxas totais de suicídio nesses municípios.

Qual o resultado da leitura detalhada desse artigo e da busca de dados complementares?

· Permitiram que víssemos que, na Áustria, a adoção de legislação restritiva à aquisição de armas reduziu o número anual de novas licenças;

· Reduziu a taxa de suicídios com armas de fogo;

· Que não foram compensados com o crescimento dos suicídios com outros meios (dados adicionais da OMS);

· Reduziu a taxa de homicídios;

· Que não foram compensados com o crescimento dos homicídios com outros meios (dados adicionais do Banco Mundial).

Usei a leitura de artigo recente para exemplificar os ganhos no conhecimento que vai muito além do achismo e das afirmações vazias. Foram mais de dois dias de trabalho, incluindo a busca de dados complementares.

Valeu a pena!

GLÁUCIO SOARES IESP-UERJ




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[i] Dados da OMS. Ver http://www.who.int/mental_health/prevention/suicide/suicideprevent/en/

[ii] SOARES, Gláucio; MIRANDA, Dayse; BORGES, Doriam. As vítimas ocultas da violência do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. (Coleção Segurança e Cidadania, 4)

[iii] O “AND” maiúsculo é um operador Booleano que requer que as duas palavras sejam usadas como palavras-chave.

[iv] Nestor D. Kapusta, Elmar Etzersdorfer, Christoph Krall, Gernot Sonneck, Firearm legislation reform in the European Union: impact on firearm availability, firearm suicide and homicide rates in Austria. The British Journal of Psychiatry Aug 2007, 191 (3) 253-257; DOI: 10.1192/bjp.bp.106.032862

[v] A mudança nas taxas de licenciamento é estatisticamente significativa(t=–5,28, P<0,0001).

[vi] (χ2=0,04, g.l=18, P=0,840)

[vii] Etzersdorfer, E., Kapusta, N. D. & Sonneck, G. (2006) Suicide by shooting is correlated to rate of gun licenses in Austrian counties. Wiener Klinische Wochenschrift, 118, 464-468.

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