A vida depois da escuridão



Publicada em 10/08/2011 às 19h04m no GLOBO

GLÁUCIO SOARES

Do balcão do 13º andar do Hyatt hotel, Elaine ouviu as vozes que diziam: “Vai! Pula! Não vai doer.” Elaine chegou a levantar o pé, mas ouviu outra voz, mais suave e doce: “Só vai ficar pior, muito pior, mas a decisão é sua.” Não pulou.

Dois dias mais tarde, Elaine, uma seguidora do irracional culto às armas nos Estados Unidos, estava, mais uma vez, cultivando a ideia do suicídio. Traduzindo do paper que ela própria escreveu (“A escuridão”): “Mais uma vez eu estava no mesmo estado de desespero. Fui ao closet e busquei a caixa com minha arma… Sentei no chão, com a arma numa mão e o carregador na outra. Na igreja falavam muito da presença de anjos protetores que se fazem sentir em situações de extrema necessidade. Essa presença é descrita como tranquilizadora e cheia de paz. Mas o que eu sentia sentada no chão com a arma na mão… era uma presença, muitas presenças, ao meu redor me apertando. Diziam: ‘Puxa o gatilho! Puxa o gatilho.’ Mas eu também ouvi outra voz que me dizia: ‘Todos os problemas têm solução, mas o que você pensa fazer não é uma solução. Não resolverá os problemas que você acha que tem e criará outros, muito piores. Você pode achar que é o fim da dor, mas não é. A dor e o desespero só vão aumentar. Se você deixar, eu ajudo você’.”

Elaine quase foi mais uma vítima cujo suicídio foi facilitado pela presença de uma arma em casa.

David Hemenway, da Harvard School of Public Health, demonstrou que a presença de armas em casa aumenta muito o risco de acidentes, homicídios e suicídios. Nos Estados Unidos, as pessoas se matam mais com armas de fogo do que com todos os demais meios somados. Elaine buscou ajuda das duas maneiras que ela conhecia: religiosa e psicológica. A psicológica foi dada por uma profissional, ainda que ligada à sua igreja. Para Elaine, religiosa, esse foi um embate clássico entre o Bem e o Mal; do ponto de vista das pesquisas sobre o suicídio, seguiu caminhos conhecidos, com história e explicação.

A história talvez tenha começado com o casamento dos pais, entre um homem forte, auto-centrado e dominante e uma mulher que é sua dependente em todos os sentidos. O pai mantinha a casa, e também era o pastor da igreja em que Elaine cresceu. Um workaholic, mais dedicado ao trabalho e à sua igreja do que à família. Elaine e a mãe eram coadjuvantes, figuras secundárias que viviam ao redor do macho Alfa. Problemas de saúde também contribuíram: devido a uma endometriose, Elaine fez uma histerectomia.

Sabia que não poderia ter filhos. Isso alterou a sua psicologia. Sua religiosidade e seu conservadorismo extremo (não podia usar shorts ou calças, ir ao cinema etc.) fizeram com que ela não soubesse lidar com homens, que buscasse um marido e casasse, virgem, seis meses depois de se conhecerem. O destino do casamento estava selado desde o início. Em pouco tempo as incompatibilidades cresceram. E veio o divórcio, que não reduziu o desejo de Elaine de construir uma família, nem de “ter” filhos. Repetiu o erro: casou pouco tempo depois, sem conhecer bem o noivo, George, que tinha dois filhos. George tinha um histórico de violência doméstica que ela não conhecia.

Viveram felizes dois anos, mas a atração pelo marido acabou e os problemas começaram. George queria que Elaine o satisfizesse frequentemente, não importa como. Quando Elaine não estava a fim, George a violava, usando de força, configurando o estupro doméstico. Do estupro e do abuso sexual à violência física a distância é curta. Foi somente quando os cortes e os hematomas apareceram que, com o auxílio intervencionista da família, Elaine se divorciou pela segunda vez.

Uma pesquisa recente (2009) informa que o abuso sexual é um indutor do suicídio, principalmente entre as mulheres. Bebbington e associados calcularam que zerar o abuso sexual na Grã-Bretanha acarretaria uma redução de 28% nos suicídios femininos.

Outras relações efêmeras não melhoraram o conceito que Elaine formara dos homens. Era o galinha que a abandonava depois de transar uma ou poucas vezes, deixando uma sensação de ser usada, multiplicada pela religiosidade, ou era o tipo cativante e promissor, que escondia que era casado. A descoberta era acompanhada da batidíssima explicação de que ele e a mulher “não tinham mais nada” e que só estavam juntos para proteger os filhos etc. A frustração de Elaine aumentava e a autoestima diminuía a cada fracasso afetivo.

No trabalho, Elaine conheceu Amanda, com um histórico semelhante. Se tornaram grandes amigas. Contaram e recontaram suas estórias pessoais e suas frustrações com os homens. Depois de uma festa de aniversário, Amanda a beijou e Elaine não correspondeu, mas não a impediu.

Em outro dia, Amanda insistiu: foi o início de uma relação de mais de três anos. Porém, o fundamentalismo religioso e o homossexualismo não combinam. Ir a uma sex-shop também não, nem viver com a amante. Elaine se afastou da igreja. Não conseguia conviver com a contradição. Stark e Lester analisaram dados referentes a quase 1.700 pessoas, concluindo que a aprovação do suicídio por qualquer razão se reduz com a frequência à igreja. O afastamento aumenta o risco.

Contudo, a relação mudou. Amanda, claramente a dominante, se tornou controladora, ciumenta e conflitiva. Havia um acordo, explícito, muito importante para Elaine, de segredo, indispensável porque trabalhavam no mesmo lugar. Após uma briga, Amanda revelou a quem quisesse ouvir a sua estória de amor com Elaine, a filha do pastor. Moravam na casa de Amanda, que expulsou Elaine de casa.

Elaine se sentiu traída por quem mais havia confiado. Os dias seguintes no escritório foram infernais. Risinhos, cochichos, deboches e até desafios à autoridade de Elaine que tinha a seu cargo uma subchefia.

Poucos dias depois, houve uma conferência no hotel Hyatt, onde esse artigo começou. Elaine redefiniu a sua vida, dedicando-se com maior afinco à sua profissão e também à religião. Ela continua a ver o que aconteceu como um embate entre o Bem e o Mal, que o Bem venceu, mas deixa amplo espaço para a terapia e a resolução dos seus problemas com a família.

Como muitas que sobreviveram a tentativas de suicídio, ou que pensaram seriamente em fazê-lo, superada a crise, Elaine percebeu que tinha outras funções e missões importantes. Circula no estado da Flórida, ajudando pessoas com necessidades nutritivas. Aconselha-as e as defende diante de seguradoras que não querem cumprir o contrato. Aos quase cinquenta anos, finalmente, Elaine se deu conta de que muitos deixaram de sofrer porque ela existe.

GLÁUCIO SOARES é sociólogo e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio (Uerj).

Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/opiniao/mat/2011/08/10/a-vida-depois-da-escuridao-925107661.asp#ixzz1VaEw2ShB

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