Os Desaparecidos

A pesquisa sobre desaparecimentos, realizada pelo ISP, gerou muitas especulações. As mais radicais afirmavam que muitos, talvez a maioria, dos desaparecidos eram vítimas de homicídios, cujos corpos não tinham sido encontrados. Essa hipótese, baseada em chute, é errada.

Desaparecimentos e homicídios não são farinha do mesmo saco. A análise de perfis não deixa dúvida: a predominância dos homens é muito maior entre as vítimas de homicídios: 92% vs 62% entre os desaparecidos. As mulheres representam menos de 10% das vítimas de homicídios, mas representam quatro de cada dez desaparecimentos registrados.

A idade também demonstra um perfil muito diferente: em comparação com as vítimas de homicídios: crianças e adolescentes, por um lado, e idosos, pelo outro, são muito mais frequentes entre os desaparecidos. Há mais desaparecidos nas pontas da idade, entre os muito jovens e os idosos. É um perfil que bate com o de outros países, onde também há muitas crianças e idosos entre os "desaparecidos". No Rio de Janeiro, os desaparecimentos são registrados pelos pais ou responsáveis, mas os reaparecimentos não. E as crianças estão brincando em casa, mas permanecem no registro dos desaparecidos. Na pesquisa que oriento apareceram muitos casos deste tipo.

Do outro lado da distribuição por idades, a percentagem de desaparecidos cresce depois dos 60 anos, em contraste com o que acontece na população porque as taxas de mortalidade aumentam e quanto maior a idade menor a percentagem sobre o total de pessoas. Os idosos representam 3% da população e 13% dos desaparecidos. Por que cresce a percentagem de desaparecidos nas idades mais avançadas? Por um lado, elas refletem a influência de doenças degenerativas, como a demência e o mal de Alzheimer; pelo outro, elas refletem a dramática perda de status que acompanha as idades avançadas, tanto na sociedade quanto na família. Perdem autonomia, passam a requerer cuidados, mas não há recursos financeiros ou emocionais para cuidá-los bem, alguns começam a vagar pelas ruas e são dados como desaparecidos.

Dados de vários surveys mostraram o tremendo desprestígio das instituições públicas (federais, estaduais e municipais) no Brasil, o que pode fazer com que muitos não relatem os desaparecimentos. É a cidadania amedrontada, encolhida. A redução da cidadania, no Brasil, também se faz sentir na baixíssima percentagem dos que relataram desaparecimentos que se dão ao trabalho de informar o reaparecimento: menos de 2%! A explicação pode residir parcialmente na dificuldade das relações com a polícia, no medo da polícia, e também pode residir parcialmente no clientelismo tradicional de uma cultura política que enfatiza direitos e não deveres, doações de cima e não conquistas de baixo. A cifra é real: 2%; as explicações são, apenas especulações que parecem sensatas. Reitero que esses mesmos fatores podem fazer com muitos desaparecimentos não sejam comunicados às autoridades. Não obstante, entre os que o foram, a grande maioria reapareceu: a pesquisa direta, feita com uma amostra dos que registraram os desaparecimentos, revela que 86% dos desaparecidos tinham reaparecido!

As notícias sobre os desaparecimentos suscitaram outra interpretação errada: os desaparecimento seriam um fenômeno do nosso estado ou, pelo menos, do nosso país. Não é assim. Os desaparecimentos são muito comuns em outros países: na Austrália, cada 15 minutos é registrado um desaparecimento, que totalizam 35 mil pessoas por ano (Missing Persons in Australia 2008). Noventa e cinco por cento reaparecem em pouco tempo, uma semana. A população da Austrália é de 21 milhões de pessoas. Na Nova Zelândia, a polícia registra oito mil pessoas como desaparecidas por ano. A população na Nova Zelândia é apenas quatro milhões e duzentas mil. O Rio de Janeiro tem perto de 15 milhões e menos de cinco mil desaparecidos. A taxa de desaparecidos na Austrália é de 167 por cem mil; 190 por cem mil na Nova Zelândia e, no Rio de Janeiro, arredondando, ela é de 33 por cem mil. Isso não significa que realmente desapareçam muito mais pessoas na Austrália e na Nova Zelândia, mas que a população australiana e a neo-zelandeza relatam os desaparecimentos em maior número e mais rapidamente.

As lições dessa pesquisa, e dos números que ela produziu, vão além da descrição e das explicações para os desaparecimentos. As reações negativas aos primeiros resultados foram além da realidade. Mostraram que o imaginário da mídia e da população é pior do que a própria realidade que é, reconhecidamente, muito ruim. Num cenário no qual as instituições públicas estão desacreditadas, exageramos o pessimismo das nossas interpretações.

Sou um dos poucos otimistas que a onda pessimista não afogou. Considero que a própria realização de uma pesquisa em área tão sensível revela um desejo de acertar. Seus primeiros resultados dissolveram nossos maiores medos. Se buscarmos, veremos que há iniciativas positivas variadas em vários pontos do país. O Brasil tem jeito!



Gláucio Ary Dillon Soares

IESP/UERJ



Publicado no GLOBO

Comentários

Postagens mais visitadas